sábado, 17 de março de 2012

Desenho apoplético - Paula Izabela

Nero me deixa
afrontado,
agastado,
alterado,
amofinado,
amolado,
desafortunado,
desditoso,
desventuroso,
escabreado,
escamado,
espinhado,
encolerizado,
enervado,
enraivado,
espumante,
exaltado,
genioso,
infausto,
infeliz,
irascível,
irritadiço,
mal-aventurado,
mortificado!

Sempre me deixa
aborrecido,
abrasado,
aflito,
amuado,
aperreado,
apoquentado,
aporrinhado,
atormentado,
azucrinado,
colérico,
emburrado,
enfezado,
enfurecido,
enraivecido,
enviperado,
exasperado,
furioso,
indignado,
infenso,
irado,
nervoso,
possesso,
raivoso!

Simplesmente
abodegado,
azedado,
acalorado,
aceso,
aperreado,
desdito,
desgraçado,
desventurado,
emputecido,
esquentado,
exacerbado,
inditoso,
infortunado,
iracundo,
irritado,
malfadado
mal-humorado,
mesquinho,
mofino,
queimado,
ranzinza,
revoltado,
zangado!

E isso foi apenas uma tentativa de me desenhar...
Disponível em: http://paulaizabela.blogspot.com.br/2011/09/luzes-da-ribalta.html


Texto de Francisco Geoci da Silva

Observando o comportamento humano ao longo de sua trajetória sobre a Terra, sobretudo por meio de registros escritos, tomamos conhecimento de que não somos uma entidade meramente biológica, mas igualmente psicológica. Não queremos apenas nos perpetuar fisicamente sobre o planeta (talvez até planetas, no futuro), mas – e para alguns até mais – queremos manter vivo o registro de nossas experiências individuais e coletivas, afinal, somos seres complexos e sociais, com muitas expectativas sobre nossa existência, porém, finitos.

O resultado dessas experiências têm se convertido em pelo menos três segmentos discursivos, relativamente distintos: o científico, o literário e o religioso; todos com sua devida importância. Nesse amplo espectro de que se constitui a vida humana, coube à literatura a manifestação das experiências mais passionais, ou seja, a expressão do sentimento do ser humano frente a elas, ao mundo e à sociedade – não que ela não possa, ao mesmo tempo, partilhar dos avanços científicos e da experiência religiosa.

Sendo assim, a Literatura tem se tornado um instrumento extremamente útil para o Homem, do contrário, já teria se extinguido. Por meio dela podemos “abusar” de nosso potencial psicológico, para permitirmos a outros acessarem nossas experiências pessoais ou para que ocorra o inverso.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Celebração da desconfiança

No primeiro dia de aula, o professor trouxe um vidro enorme:

– Isto está cheio de perfume – disse a Miguel Brun e aos outros alunos. – Quero medir a percepção de cada um de vocês. Na medida em que sintam o cheiro, levantem a mão.

E abriu o frasco. Num instante, já havia duas mãos levantadas. E logo cinco, dez, trinta, todas as mãos levantadas.

– Posso abrir a janela, professor? – suplicou uma aluna, enjoada de tanto perfume, e várias vozes fizeram eco. O forte aroma, que pesava no ar, tinha se tornado insuportável para todos.

Então o professor mostrou o frasco aos alunos, um por um. Estava cheio de água.

(Celebração da desconfiança)

Fonte: GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: LP&M, 2002, p.156

sábado, 10 de março de 2012

"Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo..."

Sensações Iniciais das páginas de Lavoura Arcaica - Raduan Nassar.

Sonho morto - Florbela Espanca


Nosso sonho morreu. Devagarinho,
Rezemos uma prece doce e triste
Por alma desse sonho! Vá… baixinho…
Por esse sonho, amor, que não existe!

Vamos encher-lhe o seu caixão dolente
De roxas violetas; triste cor!
Triste como ele, nascido ao sol poente,
O nosso sonho… ai!… reza baixo… amor…

Foste tu que o mataste! E foi sorrindo,
Foi sorrindo e cantando alegremente,
Que tu mataste o nosso sonho lindo!

Nosso sonho morreu… Reza mansinho…
Ai, talvez que rezando, docemente,
O nosso sonho acorde… mais baixinho…

Nota preliminar de "Cancioneiro"

Nota Preliminar
1. Em todo o momento de atividade mental acontece em nós um duplo fenômeno de percepção: ao mesmo tempo que tempos consciência dum estado de alma, temos diante de nós, impressionando-nos os sentidos que estão virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para conveniência de frases, tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da nossa percepção.
2. Todo o estado de alma é uma passagem. Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito. E — mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem — pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser “Há sol nos meus pensamentos”, ninguém compreenderá que os meus pensamentos são tristes.
3. Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, tempos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se, interpenetram-se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo — num dia de sol uma alma triste não pode estar tão triste como num dia de chuva — e, também, a paisagem exterior sofre do nosso estado de alma — é de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso, coisas como que “na ausência da amada o sol não brilha”, e outras coisas assim. De maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a dar através duma representação simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior. Resulta que terá de tentar dar uma intersecção de duas paisagens. Tem de ser duas paisagens, mas pode ser — não se querendo admitir que um estado de alma é uma paisagem — que se queira simplesmente interseccionar um estado de alma (puro e simples sentimento) com a paisagem exterior. [...]

Fernando Pessoa - Cancioneiro (Ciberfil Literatura Digital - versão para Adobe Acrobat Reader por Rodolfo S. Cassaca)

Teus olhos entristecem - Fernando Pessoa

Teus olhos entristecem
Nem ouves o que digo.
Dormem, sonham esquecem...
Não me ouves, e prossigo.
Digo o que já, de triste,
Te disse tanta vez...
Creio que nunca o ouviste
De tão tua que és.
Olhas-me de repente
De um distante impreciso
Com um olhar ausente.
Começas um sorriso.
Continuo a falar.
Continuas ouvindo
O que estás a pensar,
Já quase não sorrindo.
Até que neste ocioso
Sumir da tarde fútil,
Se esfolha silencioso
O teu sorriso inútil.

In: O cancioneiro.

Cinepoema (Vinícius de Moraes)



O preto no branco
Manuel Bandeira
O preto no banco
A branca na areia
O preto no banco
A branca na areia
Silêncio na praia
De Copacabana.

A branca no branco
Dos olhos do preto
O preto no banco
A branca no preto
Negror absoluto
Sobre um mar de leite.

A branca de bruços
O preto pungente
O mar em soluços
A espuma inocente
Canícula branca
Pretidão ardente.

A onda se alteia
Na verde laguna
A branca se enfuna
Se afunda na areia
O colo é uma duna
Que o sol incendeia.

O preto no branco
Da espuma da onda
A branca de flanco
Brancura redonda
O preto no banco
A gaivota ronda.

O negro tomado
Da linha do asfalto
O espaço imantado:
De súbito um salto
E um grito na praia
De Copacabana.

Pantera de fogo
Pretidão ardente
Onda que se quebra
Violentamente
O sol como um dardo
Vento de repente.

E a onda desmaia
A espuma espadana
A areia ventada
De Copacabana
Claro-escuro rápido
Sombra fulgurante.

Luminoso dardo
O sol rompe a nuvem
Refluxo tardo
Restos de amarugem
Sangue pela praia
De Copacabana...



in Antologia Poética
in Poesia completa e prosa: "O encontro do cotidiano"