domingo, 4 de maio de 2008

Eu sei, mas não devia

A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem visa, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender a luz mais cedo. E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá pra almoçar. A sair do trabalho porque já é tarde. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado, sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita ler todo dia de guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir... A sorrir pras pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e necessita. E a lutar para ganhar dinheiro com o que pagar. E a pagar mais que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho para ganhar mais dinheiro para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na rua infindável cartada de produtos.

A gente se acostuma à poluição, às salas fachadas, de ar condicionado e cheiro de cigarros. A luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. A lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo de madrugada, temer a hidrofobia, anão colher frutos no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vão se afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola no fim de semana. E se no fim de semana não há muito que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica feliz porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar- se da faca e baioneta, para poupar a vida que aos poucos se gasta, o que gasta de tanto se acostumar, se perde de si mesmo

(Marina Colasanti)

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