domingo, 1 de abril de 2012

A Escrava que não é Isaura - Mário de Andrade

Começo por uma história. Quase parábola. Gosto de falar por parábolas como Cristo... Uma diferença essencial que desejo estabelecer desde o princípio: Cristo dizia: 'Sou a verdade'. E tinha razão. Digo sempre: 'Sou a minha verdade'. E tenho razão. A verdade de Cristo é imutável e divina. A minha é humana, estética e transitória. Por isso mesmo jamais procurei ou procurarei fazer proselitismo. É mentira dizer-se que existe em S. Paulo um igrejó literário em que pontifico. O que existe é um grupo de amigos, independentes, cada qual com suas idéias próprias e ciosos de suas tendências naturais. Livre a cada um de seguir a estrada que escolher. Muitas vezes os caminhos coincidem... Isso não quer dizer que haja discípulos pois cada um de nós é o deus de sua própria religião. Vamos á história!
...e Adão viu Iavé tirar-lhe da costela um ser que os homens se obstinam em proclamar a coisa mais perfeita da criação: Eva. Invejoso o macaco o primeiro homem resolveu criar também. E como não soubesse ainda cirurgia para uma operação tão interna quanto extraordinária tirou da língua um outro ser. Era também - primeiro plágio! - uma mulher. Humana, cósmica e bela. E para exemplo das gerações futuras, Adão colocou essa mulher nua e eterna no cume do Ararat. Depois do pecado porém indo visitar sua criatura notou-lhe a maravilhosa nudez. Envergonhou-se. Colocou-lhe uma primeira coberta: a folha de parra.
Caim, porquê lhe sobrassem rebanhos com o testamento forçado de Abel, cobriu a mulher com um velocino alvíssimo. Segunda e mais completa indumentária.
E cada nova geração e as raças novas sem tirar as vestes já existentes sobre a escrava do Ararat sobre ela depunham os novos refinamentos do trajar. Os gregos enfim deram-lhe o coturno. Os romanos o peplo. Qual lhe dava um colar, qual uma axorca. Os indianos, pérolas; os persas, rosas, os chins, ventarolas.
E os séculos depois dos séculos...
Um vagabundo genial nascido a 20 de Outubro de 1854 passou uma vez junto do monte. E admirou-se de, em vez do Ararat de terra, encontrar um Gaurisancar de sedas, setins, chapéus, jóias, botinas, máscaras, espartilhos... que sei lá! Mas o vagabundo quis ver o monte e deu um chute de 20 anos naquela eterogénea rouparia. Tudo desapareceu por encanto. E o menino descobriu a mulher nua, angustiada, ignara, falando por sons musicais, desconhecendo as novas línguas, selvagem, áspera, livre, ingênua, sincera.
A escrava de Ararat chamava-se Poesia.
O vagabundo genial era Artur Rimbaud
[...]

Disponível em: http://desregrandotodosossentidos.blogspot.com.br/2009/01/escrava-que-no-izaura-mrio-de-andrade.html

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